quarta-feira, 4 de junho de 2008

Maio de 1968 - maio de 2008: “padres vermelhos” na fábrica da Renault

Maio de 1968 - maio de 2008: “padres vermelhos” na fábrica da Renault

Jean Birnbaum

Em 28 de maio de 1968, em Paris, um cartaz aparece afixado nos muros do Quartier Latin. Ele reproduz um artigo do filósofo Maurice Clavel (1920-1979), inicialmente publicado no jornal “Combat”. Nele, este esquerdista cristão, um admirador rebelde do general de Gaulle, propõe uma interpretação metafísica da insurreição: “Esta revolução é antes espiritual”, escreve. “O espírito está se vingando. Já não era sem tempo. A esperança está aí. Estudantes e jovens operários respondem por ela”. Mais tarde, este simpatizante maoísta chegará a ponto de proclamar: “Maio de 68 confirmou Deus. Sim, um Pentecostes da Igreja invisível. Houve uma forte ventania e as portas bateram”.

Este sopro prodigioso tem um nome: unidade. De um lado, a juventude estudantil se insurge, e de outro, os operários entram em greve; afinal, existe algo mais previsível do que essas ações? O verdadeiro acontecimento está em outro lugar - na fusão das duas revoltas. Juntos, tudo se torna possível: quarenta anos antes da provocação sarkozysta, Maio de 68 afirma a urgência de acabar de vez com tudo o que separa. “A grandeza do Maio francês está em dizer que a relação dominante/dominado não tem mais razão de ser”, assegura Jean-Claude Milner, um ex-maoísta e lingüista refinado. “No século 17, a respeito da Fronde [1648-1653, período de levantes em que se mobilizam o povo, os parlamentares e os nobres, e que abala a autoridade da monarquia], o cardeal de Retz declarava: ‘O povo entrou no santuário: ele levantou o véu… ‘ Maio de 68 é isso: ao longo de alguns dias, o povo levantou o véu”.

Milner faz parte do pequeno grupo dos militantes que definem as bases da Esquerda Proletária (GP), no outono de 1968. Todos eles compartilham uma mesma esperança: prolongar o estado de graça de Maio, impedir que o véu recaia. Não demora muito para eles furtarem bilhetes e organizarem circuitos gratuitos no metrô. Em 8 de maio de 1970, eles assaltam o empório de luxo Fauchon, em Paris, e logo depois vão distribuir o caviar num albergue de trabalhadores imigrantes. “Os militantes da GP bancavam os Robin Hood”, comenta em tom de brincadeira o filósofo Bernard Sichère, ele também um ex-maoísta, só que integrante de uma outra vertente. “Eles estavam imbuídos de um espírito aparentado à teologia da libertação. Aquele era exatamente o tipo de ação que poderia ter sido perpetrada por cristãos de esquerda”.

Mas o essencial, aos olhos dos jovens “guardas vermelhos”, é fazer com que os estudantes e os operários continuem agindo como atores contracenando uns com os outros, e até mesmo trocando os papéis entre si. Além disso, em artigos de “La Cause du Peuple”, (”A Causa do Povo”, o jornal da GP), uma obsessão sobressai de maneira recorrente, diretamente inspirada na “revolução cultural” chinesa: é preciso lutar contra a divisão entre trabalho manual e trabalho intelectual, superar as diferenças entre “os que trabalham e aqueles que pensam”. Para tanto, a iniciativa mais urgente consiste em multiplicar os contatos no terreno: “Aquele que não participou do inquérito não tem o direito de tomar a palavra”, martelam os militantes, retomando uma fórmula de Mao Tsé-tung.

A esta tarefa de investigação, os repórteres de “La Cause du Peuple” vão se dedicar de corpo e alma: “Nesta época, eu me torno uma espécie de monge mendigo”, testemunha Jean-Pierre Barou, hoje um editor, que multiplica então os inquéritos na Bretanha. “Eu perco a mulher com quem estou vivendo, e a menina que tive com ela também, e inscrevo a tragédia do proletariado em minha carne. Em Fougères, uma operária perguntou-me: ‘Para ganhar a sua vida, será preciso perdê-la?’ E lembrei-me imediatamente da última frase da minha mãe, ela também uma operária, em seu leito de morte: ‘Sabe de uma coisa, Jean-Pierre, eu levei uma vida de ingênua’”.

Os operários não são nem ingênuos nem passivos; no que lhes diz respeito, a imaginação se desdobra numa espontaneidade soberana: tal é para os maoístas a grande lição de Maio, aquela que arruína de uma só vez a antiga ortodoxia marxista-leninista. “No fundo, o que todos aprendem em Maio de 68 é que a classe operária pode pensar; e fazer com que outros pensem”, resumirá mais tarde o chefe da GP, “Pierre Victor”, mais conhecido como Benny Lévy, num diálogo com Philippe Gavi e Jean-Paul Sartre, que será publicado sob o título “On a raison de se révolter” (”Estamos certos ao nos revoltarmos”; editado na França pela Gallimard, 1974). A partir daquele momento, tanto na usina da Renault em Flins como naquela da Usinor (Dunkerque), ou ainda na fábrica da Babcock-Atlantique (Saint-Nazaire), trata-se de reconhecer o “poder espiritual criador” das ações operárias.

Em Maio de 68, um dos primeiros reflexos dos operários foi seqüestrar o patrão? “Estamos certos ao seqüestrarmos o patrão!”, dispara a GP. Outros maltrataram os executivos antes de procederem à “grande faxina” dos escritórios? “Bravo!”, clamam ainda os maoístas, que advertem os burgueses e seus “lacaios” nos seguintes termos: “Quando nós assim quisermos, todos unidos, nós os seqüestraremos, nós cuspiremos nas suas caras e nós os enforcaremos. Primeiro pelos pés…”

Mas a vocação dos maoístas não consiste apenas em investigar ou em promover arruaças na frente da sede das empresas. Ela exige endossar a bata azul dos operários. Para as dezenas de militantes, homens e mulheres, que decidem “instalar-se” nas fábricas, inicia-se então uma autêntica conversão: “Não é tão simples assim passar sem mais nem menos do estatuto de estudante para o de OS (operário especializado)”, conta Denis Clodic, que havia começado um ciclo de estudos de etnologia na Sorbonne quando resolveu pleitear um emprego na Renault. “É um percurso e tanto; em primeiro lugar, eu tive que fazer com que os outros se esqueçam do meu passado. Então, numa mesma linha de montagem, em Billancourt, eu me encontrei no meio de angolanos, de marroquinos, de portugueses. Neste tipo de situação, você deve aprender a falar com 300 palavras. Você acaba se tornando uma espécie de padre-operário: nós somos iguais a padres, só que padres vermelhos… que mordem”.

Dedicação, coragem, disciplina: entre o trabalho na usina e as reuniões com os camaradas, o “implantado” dorme pouco, dá tudo o que pode de si mesmo. No cerne do engajamento, insiste Benny Lévy, há “o elemento ideológico do sacrifício”. Um revolucionário não teme a morte, repete o líder maoísta. A morte simbólica, em primeiro lugar, quando o militante se retira após ter cumprido a sua missão de mediador, conforme testemunha Jacques Theureau, atualmente um pesquisador em ergonomia: “Nós fizemos de tudo para que os jovens operários adquirissem o domínio das operações”, recorda-se este antigo implantado numa usina da Renault, que organizou junto com outros militantes a visita de Sartre na usina de Billancourt, em outubro de 1970. “Nós nos considerávamos como os intermediários entre o não-poder e o poder. Nós orquestrávamos o nosso próprio desaparecimento”. Então, segue-se a morte real: em 25 de fevereiro de 1972, na Porta Zola da fábrica Renault em Billancourt, Pierre Overney desaba. Alguns instantes antes disso, ao encarar o vigia Jean-Antoine Tramoni, que estava apontando uma arma para ele, o jovem operário maoísta havia dito simplesmente: “Vai logo, atira!”

Nos dias que se seguem a este drama que abala a França inteira, os “novos partidários” da GP resolvem empenhar todas as suas forças na batalha. Não só seqüestrando Robert Nogrette, um executivo membro da diretoria da Régie Renault, como também, e, sobretudo, ocupando novamente as dependências da usina de Billancourt, apesar de esta ter a sua segurança reforçada pelos policiais militares. Neste caso, mais uma vez, a sua predicação revela ser tão solitária quanto suicida: “No terceiro dia, a gente tem o sentimento de que a coisa está preta”, conta Denis Clodic, atualmente um diretor de pesquisas na École des Mines (uma importante escola de engenharia) de Paris. “Em vez de nos dispersarmos, tomamos a seguinte decisão: ‘Mais vale fazer isso de maneira gloriosa’. Então, penetramos mais uma vez na fábrica, e lá, a situação toma um rumo verdadeiramente crítico: o nosso grupo se vê cercado e imobilizado, de maneira planejada, por uma centena de guardas que nos espancam e nos entregam para os policiais. Eu mesmo sou preso e levado para a prisão de Fresnes com a mandíbula destruída”.

Overney está morto, e o país permanece calmo. Para os militantes da Esquerda Proletária, este é o começo de uma vasta desilusão. Em breve, uma outra experiência, desta vez muito mais amena, acabará desnorteando a todos de uma vez por todas: a famosa greve da usina da Lip, que fabrica relógios em Besançon. Em 1973, ao protestarem contra o fechamento anunciado da sua empresa, os operários se organizam. No que vem a ser a primeira surpresa que eles aprontam, eles reinventam a autogestão. “Nós produzimos, vendemos e dividimos o pagamento”, este é o seu slogan. A segunda surpresa: eles são tomados pelo entusiasmo religioso, conforme constatam os emissários da GP. “Junto com Benny (Lévy), nós vamos até lá, e não acreditamos no que estamos vendo”, recorda-se Denis Clodic. “Eram padres brancos, líderes carismáticos, vestidos de branco, que organizavam uma comunidade em estado de revolta. A impregnação do catolicismo era enorme. Eles realizam tudo aquilo que nós havíamos sonhado, só que de uma maneira muito diferente, sem pensarem num único instante em guerra civil. Resumindo, nós logo compreendemos que não estávamos no rumo certo”.

Um detalhe chama as atenções de Benny Lévy e dos seus camaradas: os operários da Lip soldaram as portas da fábrica de modo a que elas permaneçam abertas, e até mesmo escancaradas. Isso nada tem a ver com as práticas da CGT (o principal sindicato francês de operários): desde Maio de 68, com o objetivo de impedir os avanços da “influência perniciosa” dos esquerdistas, o sindicato bloqueia sistematicamente o acesso das empresas. Já, no comitê de ação dos grevistas da Lip, ao contrário, todo mundo é convidado para tomar a palavra, participar, vender relógios… Ora, esses trabalhadores dispensaram sem nenhum problema o Pequeno Livro Vermelho, constatam os observadores da GP. Eles são liderados, em primeiro lugar, por ativistas cristãos, entre os quais o sindicalista Charles Piaget, membro da Ação Católica Operária, e o padre dominicano Jean Raguenès.

Na aventura coletiva dos maoístas franceses, o encontro com aqueles homens se revela decisivo. Ele provoca um brutal questionamento. “No nosso modo de ver, a greve da Lip representou o ponto extremo do grande impulso imprimido por Maio de 68″, precisa a historiadora Evelyne Cohen. “Eram operários tal como havíamos sonhado, e eles eram crentes. No contato de alguém como o padre Raguenès, que nos relata as suas experiências místicas, nós compreendemos que não é mais possível prosseguirmos mais adiante daquela forma no caminho da política. E que as molas propulsoras do engajamento são também religiosas”.

No final de 1973, a Esquerda Proletária opta pela autodissolução. A hora do inquérito social parece ter chegado ao fim. Chegou agora o tempo da busca espiritual.

“Le Monde”

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